domingo, 15 de março de 2009

Os boleros da avó

Minha vó era uma desatualizada, assim como normalmente são as avós. Só não era mais desatualizada que déspota diante de uma revolução. Minto; ela só não era mais desatualizada que o bairro do Campo Grande, com suas fachadas de "O petróleo é nosso" e "Abaixo a ditadura". Porém ela continuava a desfrutar da presente glória de um passado de meio século. Os seus boleros já faziam parte da casa, tanto quanto a tinta da parede ou o carpete mofado que envolvia o piso. A senhora se balançava ao som de Orlando Silva, se embriagava no sotaque de Dalva de Oliveira e consumia uma paixão perdida pela voz grave de Nelson Gonçalves. Suas quebranças de quadris, seus remelexos sem fim, os olhos fechados que parecia estar rezando, tudo antes me entediava. Depois comecei a ver arte naquilo tudo. Escrevi até teses, queria saber que mundo mágico é esse que os mais velhos não conseguem sair. O tempo do rádio, das fotos preto e branco e do casuísmo feminino. A bixinha se renovava a cada dia por algo que nunca mais se renovaria. Pois se até de Chico Buarque ela reclamava, alegando que o mesmo transgredia à boa música brasileira, que dera outros estilos musicais que nem fazem questão de manter a qualidade de outrora.Meus discos eram descartados antes mesmo de passarem pela porta da casa.
Um dia a avó faleceu. A notícia me deixou triste, mas nem tanto. É a ordem natural das coisas.O funeral não tinha tantos choros, ao passo em que não tinha também muitos risos. Acho que a avó já premeditava sua morte, pois antes de seu suspiro final ela escreveu uma carta a cada familiar.A minha mãe ela deu gratidão. A minha tia ela mandou um beijo fraterno. Ao meu pai, que foi seu grande amigo, ela desejou segurança. Porém a mim ela deu algo concreto: a coleção de seus cds antigos. Estava escrito na carta que ela não precisava mais das vozes de seus principais ídolos, pois iria conhecê-los pessoalmente no céu. Avó era legal e remexia bastante. Cada vez que eu vejo uma pessoa dançando a música com os olhos fechados ou se apaixonando mais de uma vez pela mesma canção, eu me lembro dela.

9 comentários:

Fabrício de Queiroz disse...

Há alguma mágica real nos velhos, como se o tempo para eles tivessem menor importância e as coisas que eles tomam como importantes confirmam aquela história de tentar pensar como o outro.

Ficamos pé atrás de chamar de antiquado ou chato, para eles nós é que estamos atrasados.

Bom que agora há uma bela coleção de discos que permanece.

Adorei seu texto, também tenho uma especial afeição pela velhice e os seus modos. Bonito, misterioso e admirável.


Forte abraço,
Fabrício

Maria Garcia disse...

1 comentários... meu blog é burro!

Antônio disse...

Gostei muito do texto, está muito bem escrito. Você tem futuro como escritora =)

Samory Santos disse...

Nem tão triste assim? COMO ASSIM? :'(

Mas enfim, curti! :D As referências musicais e geográficas, muito bem escolhidas.

Maria Garcia disse...

Isso é ficção, minha gente! Minha vó ainda tá vivinha o/ (pra quem não percebeu).

Anônimo disse...

Adorei esse!
Se dúvidar vou roubar até frase!
Falou umas boas verdades :)
E sobre os boleros, é sempre assim... são sempre vistos como maus boleros.
Bj doidinha querida

Gabriela (Bee (: ) disse...

Nem me fale do bairro do Campo Grande.
Desde que o maluco me abordou no ponto de ônibus, pode-se dizer que eu estou traumatizada...

E talvez seja assim com todas as pessoas, as coisas que passaram sempre parecem mais válidas do que as que estão passando. "No meu tempo" sempre era melhor!

(Até eu falo isso... Chega dá vergonha... "No meu tempo, criança não era assim", etc. etc. Me sinto velha)

Lembranças à sua avó, graças a Deus ela está viva XD

E viu? Passei no seu blog. XDD Se eu não passo mais, a culpa é sua que não atualiza mais, oras. u-u'

Fabrício de Queiroz disse...

Estava lendo "A Caverna" de Saramago na época... acho que foi algo de uma cena do livro que me inspirou.

Meu amigo é fã de um poeta baiano de estilo peculiar.



Abraços,
Fabrício

Helder ícaro disse...

Esse texto fez eu pensar em mim.
Musica as vezes é a característica maior de uma pessoa, agente é rotulado por isso, ex: emo, punk etc...eu toco em uma banda de Rock, isso está bem introduzido na minha vida, eu gostu de tanta coisa na music que vai desde ao punk rock, ao reavy metal, black metal.pop rock,um bom bolero, Altemar Dutra, pode se dizer q eu sou bem ecléctico dentro do meu género musical, mas eu sou tão preso ao passado, que cada vez mas eu me aprofundo em coisas que se foram, sempre descubro coisas novas do passado..e me divirto fazendo isso...